sexta-feira, 22 de junho de 2012

A Bela e a Fera


Bem, então saiu do salão de beleza pelo elevador do Copacabana Palace Hotel. O chofer não estava lá. Olhou o relógio: eram quatro horas da tarde. E de repente lembrou-se: tinha dito a "seu" José para vir buscá-la às cinco, não calculando que não faria as unhas dos pés e das mãos, só a massagem. Que devia fazer? Tomar um táxi? Mas tinha consigo uma nota de quinhentos cruzeiros e o homem do táxi não teria troco. Trouxera dinheiro porque o marido lhe dissera que nunca se deve andar sem nenhum dinheiro. Ocorreu-lhe voltar ao salão de beleza e pedir dinheiro. Mas - mas era uma tarde de maio e o ar fresco era uma flor aberta com o seu perfume. Assim achou que era maravilhoso e inusitado ficar de pé na rua - ao vento que mexia com os seus cabelos. Não se lembrava quando fora a última vez que estava sozinha consigo mesma. Talvez nunca. Sempre era ela - com outros, e nesses outros ela se refletia e os outros refletiam-se nela. Nada era – era puro, pensou sem se entender. Quando se viu no espelho – a pele trigueira pelos banhos de sol faziam ressaltar as flores douradas perto do rosto nos cabelos negros – conteve-se para não exclamar um “ah!” – pois ela era cinqüenta milhões de unidades de gente linda. Nunca houve – em todo o passado do mundo – alguém que fosse como ela. E, depois, em três trilhões de trilhões de ano – não haveria uma moça exatamente como ela. 

“Eu sou uma chama acesa! E rebrilho e rebrilho toda essa escuridão!” 
Este momento era único – e ela teria durante a vida milhares de momentos únicos. Até suou frio na testa, por tanto lhe ser dado e por ela avidamente tomado. 
“A beleza pode levar à espécie de loucura que é a paixão.” Pensou: “estou casada, tenho três filhos, estou segura.” 
Ela tinha um nome a preservar: era Carla de Sousa e Santos. Eram importantes o “de” e o “e”: marcavam classe e quatrocentos anos de carioca. Vivia nas manadas de mulheres e homens que, sim, que simplesmente “podiam”. Podiam o quê? Ora, simplesmente podiam. E ainda por cima, viscosos pois que o “podia” deles era bem oleado nas máquinas que corriam sem barulho de metal ferrugento. Ela, que era uma potência. Uma geração de energia elétrica. Ela, que para descansar usava os vinhedos do seu sítio. Possuía tradições podres mas de pé. E como não havia nenhum novo critério para sustentar as vagas e grandes esperanças, a pesada tradição ainda vigorava. Tradição de quê? De nada, se se quisesse apurar. Tinha a seu favor apenas o fato de que os habitantes tinham uma longa linhagem atrás de si, o que, apesar de linhagem plebéia, bastava para lhes dar uma certa pose de dignidade. 
Pensou assim, toda enovelada: “Ela que, sendo mulher, o que lhe parecia engraçado ser ou não ser, sabia que se fosse homem, naturalmente seria banqueiro, coisa normal que acontece entre os “dela”, isto é, de sua classe social, à qual o marido, porém, alcançara com muito trabalho e que o classificava de “self made man” enquanto ela não era uma “self made woman”. No fim do longo pensamento, pareceu-lhe que – que não pensara em nada. 
Um homem sem uma perna, agarrando-se numa muleta, parou diante dela e disse: 
- Moça, me dá um dinheiro para eu comer? 
“Socorro!!!” gritou-se para si mesma ao ver a enorme ferida na perna do homem. “Socorre-me, Deus”, disse baixinho. 
Estava exposta àquele homem. Estava completamente exposta. Se tivesse marcado com “seu” José na saída da Avenida Atlântica, o hotel que ficava o cabeleireiro não permitiria que “essa gente” se aproximasse. Mas na Avenida Copacabana tudo era possível: pessoas de toda a espécie. Pelo menos de espécie diferente da dela. “Da dela?” “Que espécie de ela era para ser ‘da dela’?” Ela – os outros. Mas, mas a morte não nos separa, pensou de repente e seu rosto tomou ar de uma máscara de beleza e não beleza de gente: sua cara por um momento se endureceu. 
Pensamento do mendigo: “essa dona de cara pintada com estrelinhas douradas na testa, ou não me dá ou me dá muito pouco”. O correu-lhe então, um pouco cansado: “ou dá quase nada”. 
Ela espantada: como praticamente não andava na rua – era de carro de porta à porta – chegou a pensar: ele vai me matar? Estava atarantada e perguntou: 
- Quanto é que se costuma dar? 
- O que a pessoa pode dar e quer dar - respondeu o mendigo espantadíssimo. 
Ela, que não pagava o salão de beleza, o gerente deste mandava cada mês sua conta para a secretária do marido. “Marido”. Ela pensou: o marido o que faria com o mendigo? Sabia que: nada. Eles não fazem nada. E ela – ela era “eles” também. Tudo o que pode dar? Podia dar o banco do marido, poderia lhe dar seu apartamento, sua casa de campo, suas jóias... 
Mas alguma coisa que era uma avareza de todo o mundo, perguntou: 
- Quinhentos cruzeiros basta? É só o que eu tenho. 
O mendigo olhou-a espantado. 
- Está rindo de mim, moça? 
- Eu?? Não estou não, eu tenho mesmo os quinhentos na bolsa... 
Abriu-a, tirou-lhe a nota e estendeu-a humildemente ao homem, quase lhe pedindo desculpas. 
O homem perplexo. 
E depois rindo, mostrando as gengivas quase vazias: 
- Olhe – disse ele -, ou a senhora é muito boa ou não está bem da cabeça... Mas, aceito, não vá dizer depois que roubei, ninguém vai me acreditar. Era melhor me dar trocado. 
- Eu não tenho trocado, só tenho essa nota de quinhentos. 
O homem pareceu assustar-se, disse qualquer coisa quase incompreensível por causa da má dicção de poucos dentes. 
Enquanto isso a cabeça dele pensava: comida, comida, comida boa, dinheiro, dinheiro. 
A cabeça dela era cheia de festas, festas, festas. Festejando o quê? Festejando a ferida alheia? Uma coisa os unia: ambos tinham uma vocação por dinheiro. O mendigo gastava tudo o que tinha, enquanto o marido de Carla, banqueiro, colecionava dinheiro. O ganha-pão era a Bolsa de Valores, e inflação, e lucro. O ganha-pão do mendigo era a redonda ferida aberta. E ainda por cima, devia ter medo de ficar curado, adivinhou ela, porque, se ficasse bom, não teria o que comer, isso Carla sabia: “quem não tem bom emprego depois de certa idade...” Se fosse moço, poderia ser pintor de paredes. Como não era, investia na ferida grande em carne viva e purulenta. Não, a vida não era bonita. 
Ela se encostou na parede e resolveu deliberadamente pensar. Era diferente porque não tinha o hábito e ela não sabia que pensamento era visão e compreensão e que ninguém podia se intimar assim: pense! 
Bem. Mas acontece que resolver era um obstáculo. Pôs-se então a olhar para dentro de si e realmente começaram a acontecer. Só que tinha os pensamentos mais tolos. Assim: esse mendigo sabe inglês? Esse mendigo já comeu caviar, bebendo champanhe? Eram pensamentos tolos porque claramente sabia que o mendigo não sabia inglês, nem experimentara caviar e champanhe. Mas não pôde se impedir de ver nascer em si mais um pensamento absurdo: ele já fez esportes de inverno na Suíça? 
Desesperou-se então. Desesperou-se tanto que lhe veio o pensamento feito de duas palavras apenas “Justiça Social”. 
Que morram todos os ricos! Seria a solução, pensou alegre. Mas – quem daria dinheiro aos pobres? 
De repente – de repente tudo parou. Os ônibus pararam, os carros pararam, os relógios pararam, as pessoas na rua imobilizaram-se – só seu coração batia, e para quê? 
Viu que não sabia gerir o mundo. Era uma incapaz, com cabelos negros e unhas compridas e vermelhas. Ela era isso: como uma fotografia colorida fora de foco. Fazia todos os dias a lista do que precisava ou queria fazer no dia seguinte – era desse modo que se ligara ao tempo vazio. Simplesmente ela não tinha o que fazer. Faziam tudo por ela. Até mesmo os dois filhos – pois bem, fora o marido que determinara que teriam dois... 
“Tem-se que fazer força para vencer na vida”, dissera-lhe o avô morto. Seria ela, por acaso, “vencedora”? Se vencer fosse estar em plena tarde clara na rua, a cara lambuzada de maquilagem e lantejoulas douradas... Isso era vencer? Que paciência tinha que ter consigo mesma. Que paciência tinha que ter para salvar a sua própria vida. Salvar de quê? Do julgamento? Mas quem julgava? Sentiu a boca inteiramente seca e a garganta em fogo – exatamente como quando tinha que se submeter a exames escolares. E não havia água! Sabe o que é isso – não haver água? 
Quis pensar em outra coisa e esquecer o difícil momento presente. Então lembrou-se de frases de um livro póstumo de Eça de Queirós que havia estudado no ginásio: “O lago de Tiberíade resplandeceu transparente, coberto de silêncio, mais azul que o céu, todo orlado de prados floridos, de densos vergeis, de rochas de pórfiro, e alvos terrenos por entre os palmares, sob o vôo das rolas.” 
Sabia de cor porque, quando adolescente, era muito sensível a palavras e porque desejava para si mesma o destino de resplendor do lago de Tiberíade. 
Teve uma vontade inesperadamente assassina: a de matar todos os mendigos do mundo! Somente para que ela, depois da matança, pudesse usufruir em paz seu extraordinário bem-estar. 
Não. O mundo não sussurrava. 
O mundo gri-ta-va!!! Pela boca desdentada desse homem. 
A jovem senhora do banqueiro pensou que não ia suportar a falta de maciez que se lhe jogavam no rosto tão maquilado. 
E A festa? Como diria na festa, quando dançasse, como diria ao parceiro que a teria entre os braços... O seguinte: olhe, o mendigo também tem sexo, disse que tinha onze filhos. Ele não vai a reuniões sociais, ele não sai nas colunas do Ibrahim, ou do Zózimo, ele tem fome de pão e não de bolos, ele na verdade só quer comer mingau pois não tem dentes para mastigar carne... “Carne?” Lembrou-se vagamente que a cozinheira dissera que o “filet mignon” subira de preço. Sim. Como poderia ela dançar? Só se fosse uma dança doida e macabra de mendigos. 
Não, ela não era mulher de ter chiliques e fricotes e ir desmaiar ou se sentir mal. Como algumas de suas “coleguinhas” de sociedade. Sorriu um pouco ao pensar em termos de “coleguinhas”. Colegas em quê? Em se vestir bem? Em dar jantares para trinta, quarenta pessoas? 
Ela mesma aproveitando o jardim no verão que se extinguia dera uma recepção para quantos convidados? Não, não queria pensar nisso, lembrou-se (por que sem o mesmo prazer?) das mesas espalhadas sobre a relva, a luz de vela... “luz de vela”? pensou, mas eu estou doida? Eu caí num esquema? Num esquema de gente rica? 
“Antes de casar era de classe média, secretária do banqueiro com quem se casara agora e agora – agora luz de velas. Estou é brincando de viver, pensou, a vida não é isso.” 
“A beleza pode ser de uma grande ameaça.” A extrema graça se confundiu com uma perplexidade e uma funda melancolia. “A beleza assusta”. “Se eu não fosse tão bonita teria tido outro destino”, pensou ajeitando as flores douradas sobre os negríssimos cabelos. 
Ela uma vez vira uma amiga inteiramente de coração torcido e doído e doido de forte paixão. Então não quisera nunca experimentar. Sempre tivera medo das coisas belas demais ou horríveis demais: é que não sabia em si como responder-lhes e se responderia se fosse igualmente bela ou igualmente horrível. 
Estava assustada quando vira o sorriso de Mona Lisa, ali, à sua mão no Louvre. Como se assustara com o homem da ferida ou com a ferida do homem. 
Teve vontade de gritar para o mundo: “Eu não sou ruim! Sou um produto nem sei de quê, como saber dessa miséria de alma”. 
Para mudar de sentimento – pois que ela não os agüentava e já tinha vontade de, por desespero, dar um pontapé violento na ferida do mendigo -, para mudar de sentimentos pensou: este é o meu segundo casamento, isto é, o marido anterior estava vivo. 
Agora entendia por que se casara da primeira vez e estava em leilão: quem dá mais? Quem dá mais? Então está vendida. Sim, casara-se pela primeira vez com o homem que “dava mais”, ela o aceitara porque ele era rico e era um pouco acima dela em nível social. Vendera-se. E o segundo marido? Seu casamento estava findando, ele com duas amantes... e ela tudo suportando porque um rompimento seria escandaloso: seu nome era por demais citado nas colunas sociais. E voltaria ela a seu nome de solteira? Até habituar-se ao seu nome de solteira, ia demorar muito. Aliás, pensou rindo de si mesma, aliás, ela aceitava este segundo porque ele lhe dava grande prestígio. Vendera-se às colunas sociais? Sim. Descobria isso agora. Se houvesse para ela um terceiro casamento – pois era bonita e rica -, se houvesse, com quem se casaria? Começou a rir um pouco histericamente porque pensara: o terceiro marido era o mendigo. 
De repente perguntou ao mendigo: 
- O senhor fala inglês? 
O homem nem sequer sabia o que ela lhe perguntara. Mas, obrigado a responder pois a mulher já o comprara-o com tanto dinheiro, saiu pela evasiva. 
- Falo sim. Pois não estou falando agora mesmo com a senhora? Por quê? A senhora é surda? Então vou gritar: FALO. 
Espantada pelos enormes gritos do homem, começou a suar frio. Tomava plena consciência de que até agora fingira que não havia os que passam fome, não falam nenhuma língua e que havia multidões anônimas mendigando para sobreviver. Ela soubera sim, mas desviara a cabeça e tampara os olhos. Todos, mas todos – sabem e fingem que não sabem. E mesmo que não fingissem iam ter um mal-estar. Como não teriam? Não, nem isso teriam. 
Ela era... Afinal de contas quem era ela? 
Sem comentários, sobretudo porque a pergunta não durou um átimo de segundo: pergunta e resposta não tinham sido pensamentos de cabeça, eram de corpo. 
Eu sou o Diabo, pensou lembrando-se do que aprendera na infância. E o mendigo é Jesus. Mas – o que ele quer não é dinheiro, é amor, esse homem se perdeu na humanidade como eu também me perdi. 
Quis forçar-se a entender o mundo e só conseguiu lembrar-se de fragmentos de frases ditas pelos amigos do marido: “essas usinas não serão suficientes”. Que usinas, santo Deus? As do Ministro Galhardo? Teria ele usinas? A “energia elétrica... hidrelétrica”?
E a magia essencial de viver – onde estava agora? Em que canto do mundo? No homem sentado na esquina? 
A mola do mundo é dinheiro? Fez-se ela a pergunta. Mas quis fingir que não era. Sentiu-se tão, tão rica que teve um mal-estar. 
Pensamento do mendigo: “Essa mulher é doida ou roubou o dinheiro porque milionária ela não pode ser”, milionária era para ele apenas uma palavra e mesmo se nessa mulher ele quisesse encarnar uma milionária não poderia porque: onde se viu milionária ficar parada de pé na rua, gente? Então pensou: ela é daquelas vagabundas que cobram caro de cada freguês e com certeza está cumprindo alguma promessa? 
Depois. 
Depois. 
Silêncio. 
Mas de repente aquele pensamento gritado: 
- Como é que eu nunca descobri que sou também uma mendiga? Nunca pedi esmola mas mendigo o amor de meu marido que tem duas amantes, mendigo pelo amor de Deus que me achem bonita, alegre, aceitável, e minha roupa de alma está maltrapilha... 
“Há coisas que nos igualam”, pensou procurando desesperadamente outro ponto de igualdade. Veio de repente a resposta: eram iguais porque haviam nascido e ambos morreriam. Eram, pois, irmãos. 
Teve vontade de dizer: olhe, homem, eu também sou uma pobre coitada, a única diferença é que sou rica. Eu... pensou com ferocidade, eu estou perto de desmoralizar o dinheiro ameaçando o crédito do meu marido na praça. Estou prestes a, de um momento para o outro, me sentar no fio da calçada. Nascer foi a minha pior desgraça. Tendo já pagado esse maldito acontecimento, sinto-me com direito a tudo. 
Tinha medo. Mas de repente deu o grande pulo de sua vida: corajosamente sentou-se no chão. “Vai ver que ela é comunista!” pensou meio a meio o mendigo. “E como comunista teria direito às suas jóias, seus apartamentos, sua riqueza e até os seus perfumes.” 
Nunca mais seria a mesma pessoa. Não que jamais tivesse visto um mendigo. Mas – mesmo este era em hora errada, como levada de um empurrão e derramar por isso vinho tinto em branco vestido de renda. De repente sabia: esse mendigo era feito da mesma matéria que ela. Simplesmente isso. O “porquê” é que era diferente. No plano físico eles eram iguais. Quanto a ela, tinha uma cultura mediana, e ele não parecia saber de nada, nem quem era o Presidente do Brasil. Ela, porém, tinha uma capacidade aguda de compreender. Será que estivera até agora com a Inteligência embutida? Mas se ela já há pouco, que estivera em contato com uma ferida que pedia dinheiro para comer – passou a só pensar em dinheiro? Dinheiro esse que sempre fora óbvio para ela. E a ferida, ela nunca a vira tão de perto... 
- A senhora está se sentindo mal? 
- Não estou mal... mas não estou bem, não sei... 
Pensou: o corpo é uma coisa que estando doente a gente carrega. O mendigo se carrega a si mesmo. 
- Hoje no baile a senhora se recupera e tudo volta ao normal – disse José.
Realmente no baile ela reverdeceria seus elementos de atração e tudo voltaria ao normal. 
Sentou-se no banco do carro refrigerado lançando antes de partir o último olhar àquele companheiro de hora e meia. Parecia-lhe difícil despedir-se dele, ele era agora o “eu” alter-ego, ele fazia parte para sempre de sua vida. Adeus. Estava sonhadora, distraída, de lábios entreabertos com se houvesse à beira deles uma palavra. Por um motivo que ela não saberia explicar – ele era verdadeiramente ela mesma. E assim, quando o motorista ligou o rádio, ouviu que o bacalhau produzia nove mil óvulos por ano. Não soube deduzir nada com essa frase, ela que estava precisando de um destino. Lembrou-se de que em adolescente procurara um destino e escolhera cantar. Como parte de sua educação, facilmente lhe arranjaram um bom professor. Mas cantava mal, ela mesma sabia e seu pai, amante das óperas, fingira não notar que ela cantava mal. Mas houve um momento em que ela começou a chorar. O professor perplexo perguntara-lhe o que tinha. 
- É que eu tenho medo de, de, de, de, cantar bem... 
Mas você canta muito mal, dissera-lhe o professor. 
- Também tenho medo, tenho medo também de cantar muito, muito mais mal ainda. Maaaaal mal demais! Chorava ela e nunca teve mais nenhuma aula de canto. Essa história de procurar a arte para entender só lhe acontecera uma vez – depois mergulhara num esquecimento que só agora, aos trinta e cinco anos de idade, através da ferida, precisava ou cantar muito mal ou cantar muito bem – estava desnorteada. Há quanto tempo não ouvia a chamada música clássica porque esta poderia tirá-la do sono automático em que vivia. Eu – estou brincando de viver. No mês que vem ia a New York e descobriu que essa ida era como uma nova mentira, como uma perplexidade. Ter uma ferida na perna – é uma realidade. E tudo na sua vida, desde quando havia nascido, tudo na sua vida fora macio como pulo do gato. 
(No carro andando) 
De repente pensou: nem lembrei de perguntar o nome dele. 


 
1977 In: Lispector, Clarice. A Bela e a Fera, Nova Fronteira, 1979, 131-146.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Amor de lua

(Vital Lima)


Eu me entreguei às sensações
E havia um inferno em mim
E o coração era com se fosse
Um alfenim
Doido pra se machucar
Só recendia a anis
E pouco importava
Que fosse de novo infeliz.
E na minha imaginação
Tu olhavas para mim
E os teus lábios tinham o gosto
E a cor do açaí.
Tanta mentira eu criei
Na minha imaginação
Com as muitas pegadas
Deixadas por teu coração.
Ah, meu amor de lua
Minha estrela cadente
Balão de São João
Que arde e que flutua...

Nós eramos tão felizes e ingênuos, mas não sabíamos o quanto.







Dar é não fazer amor



(Luiz Fernando Veríssimo)

Dar é dar.
Fazer amor é lindo, é sublime, é encantador, é esplêndido.
Mas dar é bom pra cacete.
Dar é aquela coisa que alguém te puxa os cabelos da nuca…
Te chama de nomes que eu não escreveria…
Não te vira com delicadeza…
Não sente vergonha de ritmos animais. Dar é bom.
Melhor do que dar, só dar por dar.
Dar sem querer casar….
Sem querer apresentar pra mãe…
Sem querer dar o primeiro abraço no Ano Novo.
Dar porque o cara te esquenta a coluna vertebral…
Te amolece o gingado…
Te molha o instinto.
Dar porque a vida é estressante e dar relaxa.
Dar porque se você não der para ele hoje, vai dar amanhã, ou depois de amanhã.
Tem pessoas que você vai acabar dando, não tem jeito.
Dar sem esperar ouvir promessas, sem esperar ouvir carinhos, sem
esperar ouvir futuro.
Dar é bom, na hora.
Durante um mês.
Para os mais desavisados, talvez anos.
Mas dar é dar demais e ficar vazio.
Dar é não ganhar.
É não ganhar um eu te amo baixinho perdido no meio do escuro.
É não ganhar uma mão no ombro quando o caos da cidade parece querer te abduzir.
É não ter alguém pra querer casar, para apresentar pra mãe, pra dar
o primeiro abraço de Ano Novo e pra falar:
‘Que que cê acha amor?’.
É não ter companhia garantida para viajar.
É não ter para quem ligar quando recebe uma boa notícia.
Dar é não querer dormir encaixadinho…
É não ter alguém para ouvir seus dengos…
Mas dar é inevitável, dê mesmo, dê sempre, dê muito.
Mas dê mais ainda, muito mais do que qualquer coisa, uma chance ao amor.
Esse sim é o maior tesão.
Esse sim relaxa, cura o mau humor, ameniza todas as crises e faz você flutuar…
Experimente ser amado…




Elegia

(Augusto de Campos e Péricles Cavalvante)




Deixa que minha mão errante adentre
atrás, na frente, em cima, em baixo, entre
Minha América, minha terra à vista
Reino de paz se um homem só a conquista
Minha mina preciosa, meu império
Feliz de quem penetre o teu mistério
Liberto-me ficando teu escravo
Onde cai minha mão, meu selo gravo
Nudez total: todo prazer provém do corpo
(Como a alma sem corpo) sem vestes
Como encadernação vistosa
Feita para iletrados, a mulher se enfeita
Mas ela é um livro místico e somente
A alguns a que tal graça se consente
É dado lê-la

Delírio

           Acabo de encontrá-la em minha mente. Enfim, venci a distância com as asas de meu trôpego pensar. Eis o mais forte meio de amenizar o temor que me invade neste exato momento. É bem verdade que objetivo ignorar - esquecer – a carnificina ao redor. Mas, é impossível ludibriar a todos os sentidos. É gélido o leito em que me encontro, forrado pela terra embebida em sangue. Partilho-o, para minha dor, com aqueles com os quais outrora sorri. É a ausência do sorriso em suas faces que me faz fechar os olhos para o horror que me toma. Mas, o odor de sangue, suor e medo é um lembrete constante a me atormentar. Por fim, prendo a respiração. Tentativa de um escapismo desesperado. Contudo, a audição mostra-se traiçoeira. Ainda ouço estouro dos tiros, as balas, violentas, que laceram corpos e o ar.
                                


    Apegar-me ao pensamento é tudo o que me resta. Peço para ir para longe. Viajo delirante por minhas memórias. É bem verdade que o temor me acompanha. Porém, consigo chegar até o Éden de minhas recordações. Posso vê-la sorrindo enquanto acaricia meu rosto. Olhares brilhantes são os nossos. Alvos são os lençóis, que invejam a cor morena de minha Eva. Cenário tão maravilhoso é este, que talvez só deva existir em meu imaginário. Não culparia minha mente por vacilar agora. Pouco importa. Esta fantasia é o que me mantém vivo. O que me impede de ceder ao pânico e expor ao ‘inimigo’ que dentre o jardim de cadáveres ainda resta uma vida a ser ceifada.
     Milhares de sonhos agora se decompõem a minha volta. Esperanças dilaceradas impiedosamente por uma causa que não lhes pertence. Tantas eram as promessas que os trouxeram até aqui. Tantas eram as promessas que os fariam regressar. Perderam-se todas afinal. Os corpos, infelizmente, foram mais frágeis que os sonhos. O aço que arranha o vento não tem qualquer pudor, atravessa vidas como fossem meros obstáculos. Triste é pensar que além do rastro de sangue, há o das lágrimas daqueles corações otimistas que optaram por ignorar o óbvio e são surpreendidos pela perda.
     Tantas são as divagações que tentam atrair minha imaginação neste momento. Mas, prefiro permanecer preso a ela. Quase posso senti-la afagando meus cabelos. Terei eu esta felicidade uma vez mais? Lembro-me da última carta. O perfume dela no papel. As letras desenhadas. As frases de amor bem elaboradas. É preciso sobreviver. Nem que seja para vê-la uma única vez. Logo há de amanhecer. Ao cessar dos tiros poderei manifestar a vida que ainda tenho. Fugir. Esquecer esta paisagem horrenda.
     Repentinamente fez-se o silêncio. Minhas preces devem ter sido ouvidas. Mais alguns instantes de espera e poderei me apartar deste horror que me congela a alma. O Sol haverá de lançar seus raios e eu poderei voltar à vida. Estes são meus pensamentos. Contudo, ouço passos que se aproximam. Esquecia-me do principal detalhe: sempre há um soldado que é o último a deixar o campo de batalha; a ele cabe a árdua missão de por fim às vidas agonizantes que persistem. É ele quem está agora diante de mim. Prendo a respiração. Porém, o frio e o medo me fazem tremer. É o fim: a baioneta ensangüentada já atravessou minha garganta.
     Abro os olhos para encarar a face de meu carrasco. O horror se apodera de mim uma vez mais. Os olhos diante de mim são os dela. O sangue escorre por meus lábios e mancha os lençóis alvos. Ela está a afagar meus cabelos. Há um sorriso sádico em sua face. Há um punhal ensangüentado em suas mãos. Que sonho horrendo é este que atormenta meus últimos suspiros? Será um derradeiro delírio? Serei eu mais um elemento sem vida a compor aquela paisagem funesta? Ou será que desde o início sou parte dela e estava a ser ludibriado por meu pensar vacilante? Não há mais tempo: afoguei-me em meu próprio sangue.  


Texto de Robson Heleno gentilmente cedido pelo autor.
Mais textos de Robson Heleno em http://subitoobjetivo.blogspot.com.br/

Fonte da Imagem: http://subitoobjetivo.blogspot.com.br/2012/05/delirio.html
O Caminho da Vida

Charles Chaplin

O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos.
A cobiça envenou a alma dos homens... levantou no mundo as muralhas do ódios... e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e morticínios.
Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria.
Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco.
Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.


quarta-feira, 20 de junho de 2012






Fumo


Florbela Espanca

Longe de ti são ermos os caminhos
Longe de ti não há luar nem rosas
Longe de ti há noites silenciosas
Há dias sem calor, beirais sem ninhos


Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas
Abertos sonham mãos cariciosas
Tuas mãos doces, plenas de carinho

Os dias são outonos: choram, choram
Há crisântemos roxos que descoram
Há murmúrios dolentes de segredo
Invoco o nosso sonho, entendo os braços

e é ele oh meu amor, pelos espaços
fumo leve que foge entre os meus dedos.




Êxtase em dose dupla

Paixão


Kledir Ramil
Amo tua voz e tua cor
E teu jeito de fazer amor
Revirando os olhos e o tapete
Suspirando em falsete
Coisas que eu nem sei contar

Ser feliz é tudo que se quer
Ah! Esse maldito fecho eclair
De repente a gente rasga a roupa
E uma febre muito louca
Faz o corpo arrepiar
Depois do terceiro ou quarto copo
Tudo que vier eu topo
Tudo que vier, vem bem
Quando bebo perco o juízo
Não me responsabilizo
Nem por mim, nem por ninguém

Não quero ficar na tua vida
Como uma paixão mal resolvida
Dessas que a gente tem ciúme
E se encharca de perfume
Faz que tenta se matar
Vou ficar até o fim do dia
Decorando tua geografia
E essa aventura em carne e osso
Deixa marcas no pescoço
Faz a gente levitar
Tens um não sei que de paraíso
E o corpo mais preciso
Do que o mais lindo dos mortais
Tens uma beleza infinita
E a boca mais bonita
Que a minha já tocou


        Sugar e ser sugado pelo amor


 

Carlos Drummond de Andrade



Sugar e ser sugado pelo amor no
mesmo instante boca milvalente
o corpo dois em um o gozo pleno
Que não pertence a mim nem te pertence
um gozo de fusão difusa transfusão
o lamber o chupar o ser chupado
no mesmo espasmo
é tudo boca boca boca boca
sessenta e nove vezes boquilíngua.
                                                                      Amor Mendigo


Ando distraída de meus passos,
Tua marcha, agora, é minha alvorada.
Não te culpo,
Posto que minha seja toda a culpa
Por amar-te sem medida e,
Minha vida já não existe distante da tua.

Ando apaixonada, simplesmente.
E de meus versos exala um quarto do amor
Que me sufoca a alma.
Amo-te tanto que,
Deixar-te livre é o mesmo que sofrer,
Entretanto, como prender um beija-flor
Que de minha água doce jamais bebeu?

Tu me destróis em cada gesto,
Mas os faz tão delicados,
Que tua simples passagem já colore o meu dia.
Esperar-te-ia dias, meses, anos,
Toda a minha vida,
Posto que grande e quente como sol é o meu amor
e nunca há de esvaecer.

Amo-te sem esperar de ti um riso,
Um afago, ou uma flor sequer,
nem esperar ser lembrada, se um dia você resolver partir.
És meu laço, meu riso, meu fato.
          Se vivo, é por meu sangue ser teu amor e,
Por ser meu olhar mendigo de teus passos,
De teus gestos, de teus abraços.

                                        Raíssa Bahia



Texto de Raíssa Bahia. Mais textos da autora em http://raissabahia.blogspot.com


SONETO DO PRAZER EPHEMERO



DU BOCAGE

Dizem que o rei cruel do Averno immundo
Tem entre as pernas caralhaz lanceta,
Para metter do cu na aberta greta
A quem não foder bem ca neste mundo:

Tremei, humanos, deste mal profundo,
Deixae essas lições, sabida peta,
Foda-se a salvo, coma-se a punheta:
Este prazer da vida mais jucundo.

Si pois guardar devemos castidade,
Para que nos deu Deus porras leiteiras,
Sinão para foder com liberdade?

Fodam-se, pois, casadas e solteiras,
E seja isto ja; que é curta a edade,
E as horas do prazer voam ligeiras!

terça-feira, 19 de junho de 2012

"Mesmo que não queiras mais ouvir"







Adil Bahia

Quando chegar o amanhã
Eu já terei partido daqui
Não existirá mais a imagem
Nem mesmo um rastro de mim

Quando chegar o amanhã
A lua já terá se escondido
E meus sonhos mais ocultos
Estarão desfeitos por ti

Quando chegar o amanhã
As cores não mais existirão
Meu mundo será como o caos
Escuro, negro e sem nós

Quando chegar o amanhã
Não haverá verdade absoluta
Nem mentiras capazes de dizer
Tudo o
que fui ou o que sou eu

Quando chegar o amanhã
O sol se inibirá e não surgirá
Dos céus só a chuva cairá
Será meu choro, meu lamento

Quando chegar o amanhã
Lembrarás que já te disse
Com mil olhares sutis
Outras mil palavras de amor

Quando chegar o amanhã
Saberás de tua própria boca
O que sempre quiseste saber
Sobre o que penso ou sinto por ti

Quando chegar o amanhã
Encontrarás em cada carinho
Em cada afago ou carícia que fiz
Um beijo, dois beijos de mais amor

Quando chegar o amanhã
Verás que tudo era tão lindo,
Tão simples, tão perto e
Se tornou complexo, tão distante

Quando chegar o amanhã
Aquilo que vivemos passará
E num passe de mágica vai virar pó
A se espalhar no ar da saudade

Quando chegar o amanhã
Verás que tudo tem seu tempo
Que a flor tem de nascer no momento exato
Nem antes nem depois, mas durante o orvalho

Quando chegar o amanhã
Você não vai mais lembrar do hoje
O sim já haverá se tornado passado
E o talvez permanecerá futuro

Quando chegar o amanhã
Ainda estarei contigo a toda hora
Mas, agora em silêncio, sereno
Sem as loucuras do meu desejo

Quando chegar o amanhã
Procurarei teus em teus olhos
As respostas para tudo
E me dirás: “Sim, eu sei”

Quando chegar o amanhã
Saberás que de nada adianta
É tempo perdido, bobagens
Achar que te esqueci

Quando chegar o amanhã
E despertares do sonho
Verás que estou ao teu lado
ainda faço parte de ti

Quando chegar o amanhã
Aprenderás que nunca é tarde
Pra dizer: “Também te amo”
Mesmo que não queiras mais ouvir







                               A ti amor



Adil Bahia

Ao meu amor um beijo. Um beijo, grande suave, sedento. Um beijo daqueles que ninguém imaginou. Não pensou ver ou mesmo ousou sentir. Ao meu amor carinho. Alimento de seres e pares. Há um carinho de dengo e tudo mais. Há meu querer maior que o mundo. Há meu amor guardado pra ti.

                         Nas velas



Adil Bahia



Vou partir agora em minha nau esquecida
Deixada por dias no fundo do mar de teu peito
Por anos em meio à desilusão do amor
Feitiço de sonhos que impedem o sono sereno
Venha pecado, veneno, sofrimento, prazer
Venha deixar-me a marca do desejo por todo o corpo
Feito ferro e brasa. Como fogo e espada em minha pele alva
Não te acanhes se disser que te perdi à toa, pois é real
Fatias de teus lábios estão a me deliciar boca a boca
Perversão, romance, trama de dor, matilha na relva
Aonde vou agora que já deixaste meu mundo em lama?
Fracassos, caprichos, ódios, perdões são pequenas peças
Neste teatro da vida que me elevam ao céu de tua boca
Agora seca e manchada de chão molhado de rio



segunda-feira, 18 de junho de 2012

Bachianas Brasileiras No. 1 (I. Introduction), cello ens...

Quase - Luis Fernando Veríssimo



 










Partida

Ao ver escoar-se a vida humanamente
Em suas águas certas, eu hesito,
E detenho-me às vezes na torrente
Das coisas geniais em que medito.

Afronta-me um desejo de fugir
Ao mistério que é meu e me seduz.
Mas logo me triunfo. A sua luz
Não há muitos que a saibam reflectir.

A minh'alma nostálgica de além,
Cheia de orgulho, ensombra-se entretanto,
Aos meus olhos ungidos sobe um pranto
Que tenho a fôrça de sumir também.

Porque eu reajo. A vida, a natureza,
Que são para o artista? Coisa alguma.
O que devemos é saltar na bruma,
Correr no azul á busca da beleza.

É subir, é subir àlem dos céus
Que as nossas almas só acumularam,
E prostrados resar, em sonho, ao Deus
Que as nossas mãos de auréola lá douraram.

É partir sem temor contra a montanha
Cingidos de quimera e d'irreal;
Brandir a espada fulva e medieval,
A cada hora acastelando em Espanha.

É suscitar côres endoidecidas,
Ser garra imperial enclavinhada,
E numa extrema-unção d'alma ampliada,
Viajar outros sentidos, outras vidas.

Ser coluna de fumo, astro perdido,
Forçar os turbilhões aladamente,
Ser ramo de palmeira, água nascente
E arco de ouro e chama distendido...

Asa longinqua a sacudir loucura,
Nuvem precoce de subtil vapor,
Ânsia revolta de mistério e olor,
Sombra, vertigem, ascensão - Altura!

E eu dou-me todo neste fim de tarde
À espira aérea que me eleva aos cumes.
Doido de esfinges o horizonte arde,
Mas fico ileso entre clarões e gumes!...

Miragem rôxa de nimbado encanto -
Sinto os meus olhos a volver-se em espaço!
Alastro, venço, chego e ultrapasso;
Sou labirinto, sou licorne e acanto.

Sei a distância, compreendo o Ar;
Sou chuva de ouro e sou espasmo de luz;
Sou taça de cristal lançada ao mar,
Diadema e timbre, elmo real e cruz...

O bando das quimeras longe assoma...
Que apoteose imensa pelos céus!
A côr já não é côr - é som e aroma!
Vem-me saudades de ter sido Deus...

Ao triunfo maior, avante pois!
O meu destino é outro - é alto e é raro.
Únicamente custa muito caro:
A tristeza de nunca sermos dois...

Mário de Sá-Carneiro (1890 - 1916), em 'Dispersão' 

Portugal


A arte de ser velho




Vinícius de Moraes

É curioso como, com o avançar dos anos e o aproximar da morte, vão os homens fechando portas atrás de si, numa espécie de pudor de que o vejam enfrentar a velhice que se aproxima. Pelo menos entre nós, latinos da América, e sobretudo, do Brasil. E talvez seja melhor assim; pois se esse sentimento nos subtrai em vida, no sentido de seu aproveitamento no tempo, evita-nos incorrer em desfrutes de que não está isenta, por exemplo, a ancianidade entre alguns povos europeus e de alhures.
Não estou querendo dizer com isso que todos os nossos velhinhos sejam nenhuma flor que se cheire. Temo-los tão pilantras como não importa onde, e com a agravante de praticarem seus malfeitos com menos ingenuidade. Mas, como coletividade, não há dúvida que os velhinhos brasileiros têm mais compostura que a maioria da velhorra internacional (tirante, é claro, a China), embora entreguem mais depressa a rapadura.
Talvez nem seja compostura; talvez seja esse pudor de que falávamos acima, de se mostrarem em sua decadência, misturado ao muito freqüente sentimento de não terem aproveitado os verdes anos como deveriam. Seja como for, aqui no Brasil os velhos se retraem daqueles seus semelhantes que, como se poderia dizer, têm a faca e o queijo nas mãos. Em reuniões e lugares públicos não têm sido poucas as vezes em que já surpreendi olhares de velhos para moços que se poderiam traduzir mais ou menos assim: "Desgraçado! Aproveita enquanto é tempo porque não demora muito vais ficar assim como eu, um velho, e nenhuma dessas boas olhará mais sequer para o teu lado..."
Isso, aqui no Brasil, é fácil sentir nas boates, com exceção de São Paulo, onde alguns cocorocas ainda arriscam seu pezinho na pista, de cara cheia e sem ligar ao enfarte. No Rio é bem menos comum, e no geral, em mesa de velho não senta broto, pois, conforme reza a máxima popular, quem gosta de velho é reumatismo. O que me parece, de certo modo, cruel. Mas, o que se vai fazer? Assim é a mocidade- ínscia, cruel e gulosa em seus apetites. Como aliás, muito bem diz também a sabedoria do povo: homem velho e mulher nova, ou chifre ou cova.
Na Europa, felizmente para a classe, a cantiga soa diferente. Aliás, nos Estados Unidos dá-se, de certo modo, o mesmo. É verdade que no caso dos Estados Unidos a felicidade dos velhos é conseguida um pouco à base da vigarista; mas na Europa não. Na Europa vêem-se meninas lindas nas boates dançando cheek to cheek com verdadeiros macróbios, e de olhinho fechado e tudo. Enquanto que nos Estados Unidos eu creio que seja mais... cheek to cheek. Lembro-me que em Paris, no Club St. Florentin, onde eu ia bastante, havia na pista um velhinho sempre com meninas diferentes. O "matusa" enfrentava qualquer parada, do rock ao chá-chá-chá e dançava o fino, com todos os extravagantes passinhos com que os gauleses enfeitam as danças do Caribe, sem falar no nosso samba. Um dia, um rapazinho folgado veio convidar a menina do velhinho para dançar e sabem o que ela disse? - isso mesmo que vocês estão pensando e mais toda essa coisa. E enquanto isso, o velhinho de pé, o peito inchado, pronto para sair na física.
Eu achei a cena uma graça só, mas não sei se teria sentido o mesmo aqui no Brasil, se ela se tivesse passado no Sacha's com algum parente meu. Porque, no fundo, nós queremos os nossos velhinhos em casa, em sua cadeira de balanço, lendo Michel Zevaco ou pensando na morte próxima, como fazia meu avô. Velhinho saliente é muito bom, muito bom, mas de avô dos outros. Nosso, não.

A hora íntima

 

 



Vinícius de Moraes

Quem pagará o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?
Quem, dentre amigos, tão amigo
Para estar no caixão comigo?
Quem, em meio ao funeral
Dirá de mim: - Nunca fez mal...
Quem, bêbedo, chorará em voz alta
De não me ter trazido nada?
Quem virá despetalar pétalas
No meu túmulo de poeta?
Quem jogará timidamente
Na terra um grão de semente?
Quem elevará o olhar covarde
Até a estrela da tarde?
Quem me dirá palavras mágicas
Capazes de empalidecer o mármore?
Quem, oculta em véus escuros
Se crucificará nos muros?
Quem, macerada de desgosto
Sorrirá: - Rei morto, rei posto...
Quantas, debruçadas sobre o báratro
Sentirão as dores do parto?
Qual a
que, branca de receio
Tocará o botão do seio?
Quem, louca, se jogará de bruços
A soluçar tantos soluços
Que há de despertar receios?
Quantos, os maxilares contraídos
O sangue a pulsar nas cicatrizes
Dirão: - Foi um doido amigo...
Quem, criança, olhando a terra
Ao ver movimentar-se um verme
Observará um ar de critério?
Quem, em circunstância oficial
Há de propor meu pedestal?
Quais os que, vindos da montanha
Terão circunspecção tamanha
Que eu hei de rir branco de cal?
Qual a que, o rosto sulcado de vento
Lançará um punhado de sal
Na minha cova de cimento?
Quem cantará canções de amigo
No dia do meu funeral?
Qual a que não estará presente
Por motivo circunstancial?
Quem cravará no seio duro
Uma lâmina enferrujada?
Quem, em seu verbo inconsútil
Há de orar: - Deus o tenha em sua guarda.
Qual o amigo que a sós consigo
Pensará: - Não há de ser nada...
Quem será a estranha figura
A um tronco de árvore encostada
Com um olhar frio e um ar de
dúvida?
Quem se abraçará comigo
Que terá de ser arrancada?

Quem vai pagar o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?

Rio de Janeiro, 1950.

Amor é fogo que arde sem se ver

                                         

 








Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;


É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.


Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?



Luís de Camões