sábado, 1 de setembro de 2012

 
 
ALMAS


Auta de Souza


Ó solitário das estradas,
Desventurado pensador,
Há no caminho “almas penadas”
Que vão clamando desoladas
A dor e o pranto, o pranto e a dor!...
Vós, que o silêncio amais no mundo,
Em orações ao pé do altar,
Sob as arcadas silenciosas,
Almas feridas, desditosas,
Oram convosco a soluçar.
Ao descansardes, meditando,
À sombra de árvores em flor,
Sabei que às vezes sois seguidos
Pelas angústias dos gemidos,
De almas chagadas no amargar.
Clareie a luz do sol-nascente,
Negreje a treva na amplidão,
Gemem na Terra muitos seres
Pelos amargos padeceres
Depois da morte, na aflição.
Dai-lhes dos vossos pensamentos
Consolação que adoce a dor,
Dai um conforto à desventura,
A prece cheia de ternura,
Algo de afeto, algo de amor!...

Do livro Parnaso de Além-Túmulo.
Psicografia de Francisco Cândido Xavier.

Amar é...


Albert Camus


Amar é...
sorrir por nada e ficar triste sem motivos
é sentir-se só no meio da multidão,
é o ciúme sem sentido,
o desejo de um carinho;
é abraçar com certeza e beijar com vontade,
é passear com a felicidade,
é ser feliz de verdade!


segunda-feira, 27 de agosto de 2012



“To be or not to be, that’s the question”


 'Hamlet'

William Shakespeare

Ato III
Cena 1
(…)
POLÔNIO
Você fica aqui, Ofélia. (Ao Rei.) E se apraz
A Vossa Graça, nos escondemos ali.
(Pra Ofélia.) Você lê este breviário
Pra que o exercício espiritual
Dê algum colorido à tua solidão.
Vamos ser acusados de coisa já tão provada;
Com um rosto devoto e alguns gestos beatos,
Açucaramos até o demônio.
REI
(À parte.) Oh, como isso é verdade!
que ardente chicotada em minha consciência é esse discurso.
A face da rameira, embelezada por cosméticos,
Não é mais feia para a tinta que a ajuda
Do que meu feito pra minha palavra mais ornamentada.
Oh, fardo esmagador!
POLÔNIO
Ele vem vindo. Vamos nos retirar, senhor.
(Saem Polónio e o Rei.)
HAMLET
Ser ou não ser eis a questão.
Será mais nobre sofrer na alma
Pedradas e flechadas do destino feroz
Ou pegar em armas contra o mar de angústias –
E, combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer; dormir;
Só isso. E com o sono – dizem – extinguir
Dores do coração e as mil mazelas naturais
A que a carne é sujeita; eis uma consumação
Ardentemente desejável. Morrer – dormir –
Dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo!
Os sonhos que hão de vir no sono da morte
Quando tivermos escapado ao tumulto vital
Nos obrigam a hesitar: e é essa reflexão
Que dá à desventura uma vida tão longa.
Pois quem suportaria o açoite e os insultos do mundo,
A afronta do opressor, o desdém do orgulhoso,
As pontadas do amor humilhado, as delongas da lei,
A prepotência do mando, e o achincalho
Que o mérito paciente recebe dos inúteis,
Podendo, ele próprio, encontrar seu repouso
Com um simples punhal? Quem agüentaria fardos,
Gemendo e suando numa vida servil,
Senão porque o terror de alguma coisa após a morte –
O país não descoberto, de cujos confins
Jamais voltou nenhum viajante – nos confunde a vontade,
Nos faz preferir e suportar os males que já temos,
A fugirmos pra outros que desconhecemos?
E assim a reflexão faz todos nós covardes.
E assim o matiz natural da decisão
Se transforma no doentio pálido do pensamento.
E empreitadas de vigor e coragem,
Refletidas demais, saem de seu caminho
Perdem o nome de ação. (Vê Ofélia rezando.)
Mas, devagar, agora!
A bela Ofélia!
(Para Ofélia.) Ninfa, em tuas orações
Sejam lembrados todos os meus pecados.
OFÉLIA
Meu bom senhor, como tem passado todos esses dias?
HAMLET
Lhe agradeço humildemente. Bem, bem, bem.
OFÉLIA
Meu senhor, tenho comigo umas lembranças suas
Que desejava muito lhe restituir.
Rogo que as aceite agora.
HAMLET
Não, eu não;
Nunca lhe dei coisa alguma.
OFÉLIA
Respeitável senhor, sabe muito bem que deu;
E acompanhadas por palavras de hálito tão doce
Que as tornaram muito mais preciosas. Perdido o perfume,
Aceite-as de volta; pois, pra almas nobres,
Os presentes ricos ficam pobres
Quando o doador se faz cruel.
Eis aqui, meu senhor. (Dá os presentes a ele.)
HAMLET
Ah, ah! Você é honesta?
OFÉLIA
Meu senhor?!
HAMLET
Você é bonita?
OFÉLIA
O que quer dizer Vossa Senhoria?
HAMLET
Que se você é honesta e bonita, sua honestidade não deveria admitir qualquer intimidade com a beleza.
OFÉLIA
Senhor, com quem a beleza poderia ter melhor comércio do que com a virtude?
HAMLET
O poder da beleza transforma a honestidade em meretriz mais depressa do que a força da honestidade faz a beleza se assemelhar a ela. Antigamente isso
era um paradoxo, mas no tempo atual se fez verdade. Eu te amei, um dia.
OFÉLIA
Realmente, senhor, cheguei a acreditar.
HAMLET
Pois não devia. A virtude não pode ser enxertada em tronco velho sem pegar seu cheiro. Eu não te amei.
OFÉLIA
Tanto maior meu engano.
HAMLET
Vai prum convento. Ou preferes ser geratriz de pecadores? Eu também sou razoavelmente virtuoso. Ainda assim, posso acusar a mim mesmo de tais coisas que talvez fosse melhor m
era um paradoxo, mas no tempo atual se fez verdade. Eu te amei, um dia.
OFÉLIA
Realmente, senhor, cheguei a acreditar.
HAMLET
Pois não devia. A virtude não pode ser enxertada em tronco velho sem pegar seu cheiro. Eu não te amei.
OFÉLIA
Tanto maior meu engano.
HAMLET
Vai prum convento. Ou preferes ser geratriz de pecadores? Eu também sou razoavelmente virtuoso. Ainda assim, posso acusar a mim mesmo de tais coisas que talvez fosse melhor minha mãe não me ter dado à luz. Sou arrogante, vingativo, ambicioso; com
mais crimes na consciência do que pensamentos para concebê-los, imaginação para desenvolvê-los, tempo para executá-los. Que fazem indivíduos como eu rastejando entre o céu e a terra? Somos todos rematados canalhas, todos! Não acredite em nenhum de nós. Vai, segue pro convento. Onde está teu pai?
OFÉLIA
Em casa, meu senhor.
HAMLET
Então que todas as portas se fechem sobre ele, pra que fique sendo idiota só em casa. Adeus.
OFÉLIA
(À parte.) Oh, céu clemente, ajudai-o!
HAMLET
Se você se casar,
minha mãe não me ter dado à luz. Sou arrogante, vingativo, ambicioso; com
mais crimes na consciência do que pensamentos para concebê-los, imaginação para desenvolvê-los, tempo para executá-los. Que fazem indivíduos como eu rastejando entre o céu e a terra? Somos todos rematados canalhas, todos! Não acredite em nenhum de nós. Vai, segue pro convento. Onde está teu pai?
OFÉLIA
Em casa, meu senhor.
HAMLET
Então que todas as portas se fechem sobre ele, pra que fique sendo idiota só em casa. Adeus.
OFÉLIA
(À parte.) Oh, céu clemente, ajudai-o!
HAMLET
Se você se casar,
leva esta praga como dote:
Embora casta como o gelo, e pura como a neve, não escaparás
À calúnia. Vai pro teu convento, vai. Ou,
Se precisa mesmo casar, casa com um imbecil. Os espertos sabem muito bem em que monstros vocês os transformam. Vai prum conventilho, um bordel: vai – vai depressa! Adeus.
OFÉLIA
Ó, poderes celestiais, curai-o!
HAMLET
Já ouvi falar também, e muito, de como você se pinta. Deus te deu uma cara e você faz outra. E você ondula, você meneia, você cicia, põe apelidos nas criaturas de Deus, e procura fazer passar por inocência a sua volúpia. Vai embora – chega –
foi isso que me enlouqueceu.
Afirmo que não haverá mais casamentos. Os que já estão casados continuarão todos vivos – exceto um. Os outros ficam como estão. Prum bordel – vai! (Sai.)
OFÉLIA
Ó, ver tão nobre espírito assim tão transtornado!
O olho, a língua, a espada do cortesão, soldado, sábio,
Rosa e esperança deste belo reino,
Espelho do gosto e modelo dos costumes,
Admirado pelos admiráveis – caído assim, assim destruído!
E eu, a mais aflita e infeliz das mulheres,
Que suguei o mel musical de suas promessas,
Vejo agora essa razão nobre e soberana,
Descompassada e estridula como um sino rachado e rouco.
E coisa consagrada:
A loucura dos grandes deve ser vigiada.

No restaurante


                                     


- Quero lasanha.
Aquele anteprojeto de mulher - quatro anos, no máximo, desabrochando na  ultraminissaia - entrou decidida no restaurante. Não precisava de menu, não precisava de mesa, não precisava de nada. Sabia perfeitamente o que queria. Queria lasanha.
O pai, que mal acabara de estacionar o carro em uma vaga de milagre, apareceu para dirigir a operação-jantar, que é, ou era, da competência dos senhores pais.
- Meu bem, venha cá.
- Quero lasanha.
- Escute aqui, querida. Primeiro, escolhe-se a mesa.
- Não, já escolhi. Lasanha.
Que parada - lia-se na cara do pai. Relutante, a garotinha condescendeu em sentar-se primeiro, e depois encomendar o prato:
- Vou querer lasanha.
- Filhinha, por que não pedimos camarão? Você gosta tanto de camarão.
- Gosto, mas quero lasanha.
- Eu sei, eu sei que você adora camarão. A gente pede uma fritada bem bacana de camarão. Tá?
- Quero lasanha, papai. Não quero camarão.
- Vamos fazer uma coisa. Depois do camarão a gente traça uma lasanha. Que tal?
- Você come camarão e eu como lasanha.
O garçom aproximou-se, e ela foi logo instruindo:
- Quero uma lasanha.
O pai corrigiu:
- Traga uma fritada de camarão pra dois. Caprichada. A coisinha amuou. Então não podia querer? Queriam querer em nome dela? Por que é proibido comer lasanha? Essas interrogações também se liam no seu rosto, pois os lábios mantinham reserva. Quando o garçom voltou com os pratos e o serviço, ela atacou:
- Moço, tem lasanha?
- Perfeitamente, senhorita.
O pai, no contra-ataque:
- O senhor providenciou a fritada?
- Já, sim, doutor.
- De camarões bem grandes?
- Daqueles legais, doutor.
- Bem, então me vê um chinite, e pra ela... O que é que você quer, meu anjo?
- Uma lasanha.
- Traz um suco de laranja pra ela.
Com o chopinho e o suco de laranja, veio a famosa fritada de camarão, que, para surpresa do restaurante inteiro, interessado no desenrolar dos acontecimentos, não foi recusada pela senhorita. Ao contrário, papou-a, e bem. A silenciosa manducação atestava, ainda uma vez, no mundo, a vitória do mais forte.
- Estava uma coisa, hein? - comentou o pai, com um sorriso bem alimentado. - Sábado que vem, a gente repete... Combinado?
- Agora a lasanha, não é, papai?
- Eu estou satisfeito. Uns camarões tão geniais! Mas você vai comer mesmo?
- Eu e você, tá?
- Meu amor, eu...
- Tem de me acompanhar, ouviu? Pede a lasanha.
O pai baixou a cabeça, chamou o garçom, pediu. Aí, um casal, na mesa vizinha, bateu palmas. O resto da sala acompanhou. O pai não sabia onde se meter. A garotinha, impassível. Se, na conjuntura, o poder jovem cambaleia, vem aí, com força total, o poder ultrajovem.

(Carlos Drummond de Andrade)


A MULHER SELVAGEM E A PEQUENA AMANTE

Charles Baudelaire

“Francamente, minha querida, você me cansa sem limites e sem piedade; dir-se-ia que, ao ouvi-la suspirar, você sofre mais do que as colhedoras sexagenárias ou as velhas mendigas que juntam as crostas de pão na porta dos cabarés.
“Se, pelo menos, seus suspiros exprimissem remorsos, eles lhe fariam alguma honra; mas eles só traduzem a saciedade do bem-estar e a indolência do repouso. E, depois, você não cessa de repetir-se em palavras inúteis: ‘Ame-me muito! Preciso tanto. Console-me aqui e acarinhe-me ali. Escute, eu quero tentar curá-la, nós acharemos, talvez, um modo por dois tostões, no meio de uma festa e sem ir muito longe.
“Consideremos, eu lhe peço, esta sólida jaula de ferro atrás da qual se agita, gritando como um louco, segurando as barras como um orangotango exasperado pelo exílio, imitando, com perfeição, ora os saltos circulares de um tigre ora os bamboleios estúpidos de um urso branco, esse monstro peludo cujas formas imitam vagamente as suas.
“ Esse monstro é um desses animais a que chamamos geralmente de ‘Meu anjo’, isto é, uma mulher. O outro monstro, o que grita ensurdecedoramente, com um porrete na mão, é um marido. Ele prendeu a mulher legítima como uma fera e a exibe nos subúrbios nos dias de feira, com permissão dos magistrados, é óbvio.
“Atente bem! Veja com que voracidade (talvez não simulada) ela dilacera os coelhos vivos e as galinhas pipiladoras que lhe joga seu domador. ‘Vamos, não precisa comer todo o seu patrimônio num único dia’, e, com estas sábias palavras, arranca-lhe, cruelmente, a presa cujos intestinos desenrolados ficam pendurados nos dentes da besta feroz, da mulher, quero dizer.
“Vamos! Agora umas boas porretadas para acalmar! Pois ela fixa os terríveis olhos cobiçosos sobre a comida retirada. Grande Deus! O porrete não é um pau de comédia, você não ouviu o som das pancadas na carne, apesar dos pêlos postiços? Também, agora, os olhos saltam fora das órbitas, ela urra mais naturalmente. Em seu ódio, ela cintila toda por inteiro, como o ferro batido.
“Tais são os costumes conjugais desses dois descendentes de Adão e Eva, obras de suas mãos, ó Deus! Essa mulher é incontestavelmente infeliz, embora, depois de tudo, os prazeres tiritantes da glória não lhe sejam desconhecidos. Existem infelicidades mais irremediáveis e sem compensação. Mas no mundo onde ela foi jogada jamais pôde crer que a mulher merecesse outro destino,
“Agora, nós dois, cara preciosa! Ao ver os infernos que povoam o mundo, o que você quer que eu pense de seu inferno bonitinho, você que não repousa senão sobre tão macias almofadas quanto a sua pele, você que só come carne cozida e para quem uma criada hábil cuida de trinchar os pedaços?”
“O que podem significar para mim todos esses pequenos suspiros que enchem seu peito perfumado, robusta coquete? E todas estas afetações aprendidas nos livros e essa infatigável melancolia, feitas para inspirar no espectador nenhum outro sentimento que não seja o de piedade? Em verdade, às vezes tenho vontade de lhe ensinar o que é a verdadeira infelicidade.”
“Ao vê-Ia assim, minha bela delicada, com os pés na lama e os olhos voltados para o céu, como a lhe pedir um rei, dir-se-ia que se tratava de uma jovem rã que invocaria um ideal. Se você despreza o pequeno suporte (o que eu sou no momento, como você bem sabe) cuide do grou que a devorará, engolirá e a matará quando quiser.
“Mesmo sendo eu poeta, não sou um tolo, como você crê, e se você me cansar sempre e muito com suas preciosas choradeiras, eu a tratarei como mulher selvagem, ou a jogarei pela janela como uma garrafa vazia.”

Panis Et Circenses

 

 

Gilberto Gil e Caetano Veloso

Eu quis cantar
Minha canção iluminada de sol
Soltei os panos sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões nos quintais
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer

Mandei fazer
De puro aço luminoso um punhal
Para matar o meu amor e matei
Às cinco horas na avenida central
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer

Mandei plantar
Folhas de sonho no jardim do solar
As folhas sabem procurar pelo sol
E as raízes procurar, procurar

Mas as pessoas na sala de jantar
Essas pessoas na sala de jantar
São as pessoas da sala de jantar
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer
 
 
Fumo
Florbela Espanca

Longe de ti são ermos os caminhos
Longe de ti não há luar nem rosas
Longe de ti há noites silenciosas
Há dias sem calor, beirais sem ninhos

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas
Abertos sonham mãos cariciosas
Tuas mãos doces, plenas de carinho

Os dias são outonos: choram, choram
Há crisântemos roxos que descoram
Há murmúrios dolentes de segredo
Invoco o nosso sonho, entendo os braços

e é ele oh meu amor, pelos espaços
fumo leve que foge entre os meus dedos.